I
Motivo da coluna da semana passada por causa da reflexão sobre Cubatão em sua obra, o escritor Marcelo Ariel volta ao Porto Literário, desta vez devido a dois de seus poemas terem sido publicados em julho na Alemanha em uma coletânea de escritores latinoamericanos, Mehr als Bücher/Más que libros (Mais que livros), edição bilíngüe alemão-espanhol (com exceção das poesias dos brasileiros, editadas em alemão e português).
Foram selecionados a terceira parte de No deserto com Paul Bowles:
Honestamente o que foi dito está acima do visto pelos olhos, acima das árvores, que aparentemente são os anos e as estações, acima do teu rosto indiferente, acima do rugido desse vento obstruído pela floresta, acima do que nela está ouvindo o chiado fino das coisas que jamais foram reais, do que está escutando nosso esqueleto, “nossa carcaça psíquica”, acima destes signos que se movem como um lençol na superfície de um sono, acima da nossa respiração inquieta e do abraço maravilhoso desse repouso do Nunca mais, das ruas que estão em toda a parte e são a mesma, acima de tudo o que pôde ser assassinado e principalmente acima desse Ser que pensou reinar sobre as árvores como se ouvisse úteros que num paradoxo concebem a si mesmos, como se ouvisse do fundo da mente e de sua “dupla exposição”, o sussurro mecânico e sem razão do próprio coração....
E a terceira parte de Me enterrem com a minha AR 15 Scherzo-rajada 2, dedicada a Mariana Ianelli:
Antes de tudo será a saudade
O corpo desse vento noturno
que sentimos dentro da mão
Será possível encontrar o amor através deste silêncio?
Era esse o enigma que sondava os quadros?
Haverá o apocalipse dessa palavra
lentamente devorando e dissolvendo todas as outras
até ser ela mesma devorada e dissolvida
pois ela é só mais um casulo do invisível
que se esconde na medula do visível...
Onde a possibilidade de ser
fora de todas as palavras
nos tornará imunes à aniquilação da Alma?
Desse instante aberto para fora da nossa presença
Disto que chamávamos de vento, amor, silêncio...
Que será apenas um silencioso esqueleto
com a marca do nosso esquecido olhar.
Os dois são do livro Tratado dos anjos afogados, alvo da coluna anterior, Vila Socó e a literatura e a escolha deles, de caráter metafísico, para a coletânea alemã é prova (para os desavisados) de que a poética de Ariel vai muito além de um catálogo das mazelas de Cubatão (ainda que a literatura de Ariel seja a primeira forma de narrativa a dar conta da tragédia da Vila Socó).
II
Mehr als Bücher reúne escritores publicados em editoras “cartoneras” de nosso continente, que usam papelão coletado por catadores para a realização das capas, que acabam sendo desenhadas uma por uma, fazendo de cada exemplar um objeto único. O projeto começou em 2003 em Buenos Aires, Argentina, com a criação da editora Eloísa Cartonera, e se espalhou pela América do Sul e México. No Brasil, criada em São Paulo, temos a Dulcinéia Catadora, da qual tratei em A literatura ecológica de Dulcinéia Catadora quando, em setembro de 2007, foram lançados livros de quatro autores pela editora em Santos, entre eles o próprio Ariel e Flávio Viegas Amoreira. O paranaense radicado em Santos Ademir Demarchi também já teve um livro editado pelo projeto, Do sereno que enche o Ganges.
As editoras cartoneras se espalharam pela Argentina, chegando a Córdoba (Textos de Cartón) e Neuquén (Cartonerita Solar), e quase todo o continente Uruguai (La Propia Cartonera), Chile (Animita Cartonera e La Cizarra Cartonera), Paraguai (Felicita Cartonera e Yiyi Yambo), Bolívia (Mandrágora Cartonera, Yerba Mala Cartonera e Nicotina Cartonera), Equador (Matapalo Cartonera), Colômbia (Patasola Cartonera), Peru (Sarita Cartonera) El Salvador (La Cabuda Cartonera) e México (Santa Muerte Cartonera, La Cartonera, La Ratona Cartonera e Regia Cartonera), além de mais uma no Brasil, a Katarina Kartonera, em Florianópolis.
A ideia chega agora na Alemanha, onde é criada mais uma editora cartonera, a PapperLapPapp, responsável pela coletânea, reunindo, além de Ariel, os seguintes escritores: João Filho, Maicknuclear, Sebastião Nicomenedes e Alice Ruiz (Brasil); Manuel Alemian, Santiago Llach, Washington Cucurto – um dos criadores da ideia – e Fabian Casas (Argentina); Crispín Portugal e Roberto Cáceres (Bolívia); Diana Viveros, Cristino Bogado e Edgar Pou (Paraguai); e Hector Hernández, Ernesto Carrión, Miguel Ildefonso, Yaxkin Melchy e Roxana Miranda (México).
Como sempre, o trabalho é feito por cooperação. Na apresentação, Timo Berger, poeta, tradutor e diretor do Festival Latinale, de Berlim, voltado para a literatura latinoamericana, conta que Mehr als Bücher nasceu em oficinas coordenadas por Cucurto e Maria Gómez junto a alunos e professores das escolas Friedensburg-Oberschule e Kurt-Schwitters-Oberschule: “Foram os próprios que selecionaram os textos e desenharam as capas”.
Além disso, os poemas em espanhol foram traduzidos para o alemão, além de Timo Berger, por Claudia Wente, Miriam Müller, Diana Grothues e Stefan Degenkolbe. Jana Winkel traduziu os poemas dos brasileiros.
Nesse momento em que atinge a Europa, justamente em uma coletânea, o projeto mostra que já atingiu certa maturidade e que já pode olhar para trás e fazer sua própria história. Marcelo Ariel dá notícias de que as próximas Cartoneras serão criadas na Inglaterra e Estados Unidos. Nascido em meio à crise financeira na Argentina, quando não havia papel para publicar livros nem dinheiro para comprá-los, o fato de o projeto chegar aos Estados Unidos e Inglaterra um ano após a crise que abateu o sistema financeiro é revelador do potencial transformador como o das Cartoneras. Ou seria apenas coincidência?
Referências
Marcelo Ariel e outros. Mehr als Bücher. Edição bilíngue alemão-espanhol. Berlim, Alemanha: PapperLaPapp, 2009.
Alessandro Atanes
miércoles, 27 de enero de 2010
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